Márcia Velasco CRP 05/20600, Mestre em Psicologia pela PUC-Rio, Psicóloga Clínica e Hospitalar, Coord dos Serviços de Psicologia dos Hospitais Memorial do Eng. de Dentro, Assim Méier e Tijuca, Coord da Pós-graduação dos Cursos de Pós-graduação em Psicologia Hospitalar e da Saúde da Universidade Santa Úrsula (USU) e da Veiga de Almeida (UVA), Psico-oncologia (USU) e Psicologia em Oncologia (UVA) Diretora Executiva da Partner Treinamento e Desenvolvimento.

Psi. Márcia Velasco

A dor da gravidez perdida

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A DOR DA GRAVIDEZ PERDIDA

MULHER MÃE
O papel da mulher no que tange à maternidade é marcado, ao longo de nossa história, principalmente após o século XVIII, como uma de suas responsabilidades primordiais. Segundo Giddens (1993), a “invenção da maternidade” faz parte de um conjunto de influências que afetaram as mulheres a partir do final do séc. XVIII, a saber: o surgimento da ideia de amor romântico; a criação do lar; a modificação das relações entre pais e filhos. Ele destaca como novo a forte associação da maternidade com a feminilidade. Essa associação consolidou uma ideologia que passou a exaltar o papel natural da mulher como mãe, atribuindo-lhe todos os deveres e todas as obrigações na criação do(a)s filho(a)s e limitando a função social feminina à realização da maternidade.

No final do século XVIII, a mulher passa a assumir o papel de mãe, exaltando o amor materno, sendo esta a indicada e privilegiada pelo Estado para cumprir o principal papel de cuidadora, respondendo positivamente ao que era esperado. Essa nova concepção de maternidade, advinda a partir do século XVIII, trouxe alguns encargos, que ultrapassam os nove meses de gestação e que envolvem novas preocupações de natureza social, afetivo-emocional e cognitiva da mãe para com o filho.

Em nossa história observamos que a mulher passa a ocupar um lugar importante, através do papel de maternidade, num primeiro momento, impulsionado pelos interesses políticos e sociais, que se fizeram presentes ao longo dos séculos. A mulher, neste sentido, é colocada como elemento imprescindível para agregar a família e possibilitar o diálogo entre seus membros, especialmente com os filhos.

O papel da mulher se constrói historicamente, tendo como ideal máximo a maternidade, visto como caminho de plenitude e realização feminina. A maternidade assim, se configura, ao longo da história, como uma função valorizada socialmente. Desse modo, ser mãe seria pertencer a uma classe especial, ter uma posição de aparente prestígio na sociedade.

Após o século XVIII, o amor materno é exaltado como um valor ao mesmo tempo natural e social, favorável à espécie e à sociedade. A partir do século XIX, uma nova imagem da relação da mulher com a maternidade é enfatizada. O bebê e a criança eram os objetos privilegiados da atenção materna. A devoção e a presença constante da mãe surgem como valores essenciais, sem os quais a preservação da criança não poderia se dar. Essa responsabilidade materna fez-se acompanhar de uma crescente valorização da mulher-mãe, a rainha do lar, dotada de poder e respeitabilidade no domínio doméstico. A mulher passou a assumir, além da função de nutrição de seu filho, a de educadora e, muitas vezes, a de professora.

A transição de um modelo tradicional de maternidade deu-se com a consolidação da sociedade industrial. A mulher é definida essencialmente como mãe, com proles numerosas, para um modelo moderno de maternidade. Paulatinamente, ela incorpora outras possibilidades: trabalhadora, esposa e mulher, com proles reduzidas e planejadas. Desse modo, o processo de industrialização e a forma como as mulheres ingressam no mercado de trabalho são marcados por profundas desigualdades sociais e sexuais, levando a impactos significativos na mudança dos padrões de maternidade.

Contudo a maternidade continua sendo afirmada como elemento forte da cultura e identidade feminina pela sua ligação com o corpo e com a natureza. Assim, parece-nos que as mulheres contemporâneas ainda são chamadas às suas responsabilidades sociais diante da maternidade, carregando sobre si uma missão de procriação. Desse modo, indo ao encontro do nosso tema, ressaltamos o quanto repercute a perda gestacional, pois a mulher perde a gestação, evento este que a coloca diante do fracasso nas expectativas da família, revelando o não cumprimento da ordem social. Ainda trazemos a nossa reflexão no que concerne à vivência diante perda da gravidez, revelando-nos, para além do fracasso na procriação, uma mulher que passa a ser vista com uma pessoa fracassada, perdendo o lugar de mulher em seu atributo, a maternidade, responsável pela perpetuação da família e da espécie.

PERDA da GRAVIDEZ

Como constatamos, a procriação é um valor preponderante para a família e principalmente para a mulher, sendo, ainda em nossos dias, imputada a ela, em menor grau, a obrigatoriedade de gerar, gestar, parir e criar sua prole. Assim, as perdas gestacionais favorecem a vivência da perda destas condições importantes para a mulher.

A probabilidade de se alcançar uma gravidez normal é de apenas 25%, e a maior contribuição à baixa fecundidade é dada por perda não reconhecida do embrião pela mulher. O aborto espontâneo é a complicação mais frequente da gravidez, e a grande maioria ocorre no 1º trimestre. A incidência do aborto espontâneo, reconhecido pela população em geral, é de 10-15%. Todavia, com o desenvolvimento de testes altamente sensíveis ao beta (hCG-b) para detectar a presença do embrião, evidenciou-se que a magnitude da perda gestacional, após a implantação e a identificação clínica da gestação, é da ordem de 60% (MONTENEGRO & REZENDE, 2011). Conforme abordado anteriormente, na evolução do conceito de família, temos, como ponto principal, a valorização da vida e da procriação. Em contrapartida, há a dificuldade de lidar com as situações relacionadas à morte, sendo atribuído um caráter eminentemente negativo à palavra aborto. Fora do âmbito médico, o termo refere-se a monstruosidades, anomalias e deformidades. Além disso, também são considerados ao ato de abortar significados pejorativos: falhar, não se desenvolver, não ter êxito, impedir, frustrar. Evidencia-se assim, diante da situação de aborto, um caráter destrutivo.

Esses diferentes significados constelam a vivência do casal que se confronta com a experiência do abortamento espontâneo. Mesmo que tendam a negar a importância desse acontecimento e de suas consequências emocionais, em uma aparente conformação às regras sociais não verbalizadas, esses conteúdos se farão, de alguma forma, presentes na vida do casal. Vale ressaltar que esta tendência a se afastar do fato pode constituir-se em sério risco para o equilíbrio psíquico, especialmente para a mulher (CASELATTO, 2005). A palavra aborto, em sua raiz latina, significa: aboriri, ab afastamento e oriri vida. Esta situação reporta-se a uma vivência de negação à missão social da mulher, afastando-se da sua condição e papel de gerar, nutrir e albergar a vida (QUAYLE, 1997). O nascimento reporta-se à vida, enquanto o abortamento à morte.

Outro fator preponderante na gravidez pode ser a morte fetal ou natimorto, caracterizado como a morte do produto da gestação antes da expulsão ou da extração completa do corpo materno (BRASIL, 2000). Esta se distingue do aborto espontâneo na medida em que a mulher guarda, em seu útero, o feto morto antes de expulsá-lo. Só há duas formas de expulsão deste feto: ou esperar pelas contrações que podem vir uma ou duas semanas mais tarde, ou fazer a indução do parto. No mundo, acontecem cerca de três milhões de partos de natimortos. No Brasil, a incidência de morte neonatal foi de 10,45 para cada grupo de mil nascimentos (BRASIL, 2000). Esse acontecimento e o procedimento para esvaziamento uterino poderão originar uma reação de sofrimento emocional que requer ajustamentos psicológicos, familiares e individuais, difíceis de serem aceitos e vividos. Uma mulher que passa por essa experiência pode se sentir responsável ou culpada, e ainda reviver essa angústia em uma gravidez futura por temer dar à luz um bebê com dificuldades ou perdê-lo novamente.

Nesse período crítico da perda gestacional, ao ver-se paradoxalmente como geradora de “bebê morto” e como incapaz de manter e abrigar a vida, a mulher tende a se sentir não feminina. Ela vivencia a falha, sente-se incapaz não só de ter filhos, mas também de cumprir seu “papel” social. Tende a deixar-se deprimir como forma de elaboração da perda e vivência do luto. Um filho que nasce morto é uma inversão da ordem natural dos eventos de uma família e completamente fora de lugar no ciclo da vida, sendo gerador de estresse (BROWN, 1995).

Márcia Velasco
BRASIL, Ministério da Saúde. Gestação de alto risco. Secretaria de Políticas. Área Técnica da Saúde da Mulher. Brasília, DF, 2000.

BROWN, F. H. O impacto da morte e da doença grave sobre o ciclo de vida familiar. In: CARTER, B. Mc GOLDRICK, M., org. As mudanças no ciclo de vida familiar. 2ª. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

CASELLATO, G. Perdas e lutos não reconhecidos por enlutados e sociedade. Campinas, SP: Livro Pleno, 2005.

MONTENEGRO, C.A.B.; REZENDE FILHO, J. Rezende Obstetrícia Fundamental. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2011, 12ª ed.

QUAYLE, J. O abortamento espontâneo e outras perdas gestacionais. In: ZUGAIB, M; TEDESTO, J.; QUAYLE, J. Obstetrícia Psicossomática. São Paulo: Atheneu, 1997.